Diário da Gruta

Crônicas

Cheguei sexta-feira às 18h. Logo Oskar me levou para colocar as coisas na gruta e subimos para jantar.

Durante o jantar já estava inquieto para voltar para a gruta. Parecia que ela me chamava.

Cheguei com uma lanterna, pois já estava escuro. Ao entrar na gruta tive a visão: meus demônios para um lado (direito) e meus anjos para o outro lado (esquerdo). Pareciam que estavam em uma bagunça dentro de mim, e ali, eles seguiram sua polarização.

Fiz minhas orações, coloquei uma vela na porta da gruta, pelo lado de fora, fechei a porta, vi a imagem do Buda no altar que havia dado há um tempo para o Oskar, fiquei feliz e dormi em um segundo.

Muitos sonhos vieram durante a noite. Relato só alguns:

  1. Festa. Estava tendo uma festa nas grutas. Dentro e fora. Fogueira música, dança. Tudo muito divertido. Parecia uma festa sagrada. Oskar e Mari estavam presentes cuidando de tudo. A gruta não era mais uma gruta e sim uma casa enorme, com varandas. No sonho eu pensava: mas a gruta que entrei era tão pequena, como ficou tão grande? Tudo muito divertido e agitado. A festa era um ritual espiritual.
  2. Entra na Caverna um mostro, parecia um cão preto, e morde minha cabeça e começa a me arrestar para fora da Caverna. Apesar de doer a mordida não me fazia sangrar. Segurei a mandíbula da fera para tentar abri-la e neste instante senti uma mão macia feminina e me entreguei a esta energia, equilibrando a situação.
  3. Muitos outros sonhos desconexos, e muitas visões. Seres celestiais e infernais. Tinha de tudo nas visões.
  4. Dormi bem, embora a noite tenha sido bem agitada. A cada sonho, eu acordava, fechava os olhos, e começava a sonhar de novo. A mente estava se organizando.

Amanheceu. Propus-me a ficar em silêncio e de jejum neste sábado. Acordei sem fome, e fui ao rio tomar banho.

A água estava ótima. Fiquei ali algumas horas tomando sol e meditando, mas logo a gruta me chamou outra vez.

Chegando à gruta a surpresa: duas maçãs, duas bananas, em um prato com guardanapo e flores, e uma garrafa d´água. Uma imagem que me deixou feliz.

Ainda não estava com fome e deixei as frutas no altar para comê-las depois.

Estava pensando que teria que ir à pousada pegar água, mas não queria falar e a garrafa ali deixada pelos meus amigos, acabou com minha preocupação.

Peguei o texto da meditação dos 21itens e comecei a ler em voz alta.

No meio do texto o Oskar chegou e me perguntou se eu estava precisando de algo. Trocamos meia dúzia de palavras, ele viu que eu estava bem e feliz, e foi embora. Foi uma boa visita naquela hora. Senti-me cuidado e ao mesmo tempo respeitado.

Continuei a leitura.

Ainda não tive fome.

Meditei por algum tempo, não sei quanto, pratiquei o que havia lido equilibrando corpo, mente e energia, e depois os lungs do éter, do ar, do fogo, da água e da terra, nesta ordem. E depois encontrando a sabedoria do espelho, da igualdade, do discernimento, da causalidade e da natureza búdica de todos os seres.

Firmei o compromisso com a verdade, a coragem, a paciência e a persistência.

Meditação muito profunda.

Os pernilongos eram as tentações para me tirar da concentração. Volta e meia caia na tentação e matava um ou dois. Acontece com os melhores praticantes…

Depois da meditação comecei a juntar os gravetos para a fogueira. O processo de procura dos gravetos foi uma meditação. Alguns finos, outros grossos, uns verdes, alguns que já tinham sido queimados parcialmente pelo fogo. Peguei um que tinha cogumelos e não quis queimá-los. Havia outros ali sem eles. Enfim, fomos juntando os gravetos e algumas folhas secas.

Depois dormi/sonhei mais um pouco. Pensei que aquele sono poderia prejudicar meu sono à noite, mas dormi mesmo assim. Estava com vontade e dormi. Mesmo porque o sono na gruta estava cheio de aventuras e por isso era convidativo.

Acordei e fui tomar mais um banho no rio. Encontrei um pássaro lindo preto que estava tomando sol na pedra. Aproveitei e peguei alguns arbustos para fazer a fogueira. Um que era maior e estava mais verde, deixei ao lado da cama para me servir de cajado e equilibrar meu receio de eventual aparecimento de uma cobra.

Entrei na gruta e fiquei meditando lá. A sensação de meditação lá é de estar a céu aberto, sem limite, as pedras representando as estrelas, e o branco entre elas o espaço infinito.

Meditei profundo e em seguida dormi de novo…

Acordei no final da tarde e como já estava escurecendo resolvi acender a fogueira. Sabia que ia ser uma boa experiência ficar ali, por horas, cuidando do fogo, mexendo nos gravetos em chamas e colocando outros para o fogo não acabar. O fogo ora ficava forte, ora fraco, assim que colocava a lenha ele parece que diminuía, mas logo esquentava e começava a consumir a lenha nova. Uma dança linda de se ver. Estava eu, ele, e o ambiente em volta. Aliás, vemos nesta hora como nossos cinco sentidos são limitados. Se eu dependesse apenas da visão, veria muito pouco. A visão vê uma sala, qualquer que seja, limitada. A audição e o olfato podem perceber além da sala, percebem cheiros e sons que não têm causa no mesmo ambiente limitado da visão. Mas a mente, ela foge a qualquer limitação. Vai para o passado, para o futuro, para as ilusões, medos, pensamentos ordenados ou não. A mente voa longe cheia de imagens e palavras. Já o espírito não. Ele consegue enxergar tudo, sentir tudo e se manter ordenado e calmo, sem limite, conectado ao movimento do universo, sem preocupação, sem desejo, realizado de estar consciente de si.

Fiquei curtindo o fogo, mas começou um pouco de dor de cabeça e a traduzi como sendo a fome. Lutei um pouco contra ela, querendo forçar meu corpo, mas dancei com a energia da maçã, de uma forma parecida ao do sonho da fera, quando tocava sua mandíbula e ela virava uma mão feminina macia e atrativa. Comi a maçã e a banana oferecidas pelos amigos. Me fez bem, menos rigidez. Menos 8/80. Mais flexibilidade, mais caminho do meio.

Agradeci as frutas. A dor de cabeça passou. Deixei as outras duas frutas para o café da manhã do dia seguinte.

Fiquei horas observando e cuidando do fogo, até a noite chegar, escura e imponente. O fogo ficou mais belo e importante sem a luz do sol. Agora era só ele a iluminar o ambiente. Fiquei mais algum tempo ali, volta e meia sentado, às vezes em pé quando, de repente, um clarão por cima da mata: era a Lua dando o ar da graça. E que graça! Ver a Lua cheia, prateada, entre as copas das árvores, foi 6tcmais uma experiência. No silêncio conseguimos ver melhor as coisas da natureza. A Lua cheia já é uma altíssima imagem, mas ali, com aquela moldura da mata, estava Divina.

A Lua foi subindo e logo uma nuvem de chuva a cobriu. Percebi a sensação triste daquela imagem dentro de mim, e pensei “nossa uma nuvem negra tampando a Lua”, por um segundo fiquei com medo, quis voltar para a gruta, onde me sentia absolutamente seguro (especialmente após minha aquisição do cajado no rio), mas pratiquei os ensinamentos que havia lido do Lama Padma Samten. Aquilo era apenas uma imagem (sabedoria só espelho). Uma Lua, tampada temporariamente por uma nuvem (sabedoria do discernimento). O medo foi embora, vi o vazio deste sentimento, sentei no banco e esperei a nuvem passar (sabedoria da natureza búdica de todos os seres). A nuvem negra passou logo, e a Lua se fez brilhar novamente. Despedi-me dela e fui dormir, pois o fogo estava quase terminando.

Acendi a vela fora da gruta, fechei os olhos e dormi novamente. Mais sonhos, acordei, dormi, acordei dormi. A noite foi agitada, mas não tanto quanto a primeira. Eu já estava bem descansado e minha mente já mais organizada com os sonhos da noite passada.

Acordei, havia ainda luz da Lua, fiquei com fome e comi a segunda maçã. Meditei por algum tempo, e em seguida dormi.

Acordei cheio de energia, queria caminhar, correr, fazer exercícios, mas quando vi, ainda era noite. Já não havia mais Lua, mas ainda era noite. Pensei em pegar a lanterna e sair andando, mas preferi os sonhos agitados e voltei a fechar os olhos.

Quando fechava os olhos na Gruta via muitas imagens.  Não são pensamentos. São imagens mesmo. Parecem que vem de um lugar diferente do pensamento. Os pensamentos parecem ter uma ordem, ainda que desconexos. As imagens não, elas simplesmente aparecem e somem.

Era difícil distinguir as imagens dos sonhos. Muitas vezes não conseguia distingui-las. Em uma destas imagens/sonhos a Chiara apareceu na Caverna e chamou: “Pai, a mamãe está chamando”. Eu respondi: “Diga a ela que amanhã eu volto”. Ela saiu da Caverna e sumiu.

Acordei e o sol já estava raiando. Saiu a Lua, entrou o Sol. Os raios de sol entrando na mata entre as folhas das árvores é uma imagem linda. Ver os pequenos insetos e a pouca poeira do ar, se exibindo nestes fachos de luz, é muito interessante e rico.

Os olhos ficam cheios.

Acordei forte. Cheio de energia. Com um pouco de fome, e comi a última banana.

Fui até a pousada para ver como estava o tempo do café da manhã, e como ainda a maioria dos hóspedes não havia tomado café, decidi ir tomar um banho de rio, antes do café. Mergulhei e fiquei deixando a correnteza levar meu corpo. Ficava segurando em uma pedra e deixando a água massagear meu corpo e balançá-lo. Respirava, prendia a respiração e mergulhava segurando apenas uma pedra no fundo do rio, e deixando a correnteza levar o resto do corpo. Fiz isso umas dezenas de vezes. Uma boa experiência muito boa.

Voltei, e no meu lugar do café, havia um presente embrulhado, e com flores. Era um caderno de anotações. A cena, com o embrulho e as flores já era um presente em si. A Mari também mandou um destes para a Chiara, com uma dedicatória especial.

Tomei café: só frutas e ovo mexido. Comer na medida certa faz muito bem.

Contando o sonho no café, especialmente o da fera, a Betinha falou que aquela cena poderia representar a carta da “força” arcano XI do Taro, e me convidou para a palestra. Na palestra foram vistas estas três cartas, que tiveram muito significado com a minha experiência na gruta: o eremita, a roda e a força. Excelente explicação.

O eremita se isola para ganhar força, a roda mostra que retornamos sempre para o mesmo lugar e a força equilibra a energia sexual. Sem repressão, mas sem perversidade tb. Arrumei as coisas, dei um abraço carinhoso em meus amigos eternos Oskar e Mari, e comecei a voltar para casa. No caminho tirei algumas fotos da paisagem linda que vi.

 

 

Paulo Thomas Korte

12/Março/2017

Last modified: 02/03/2021

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