Churrasco no Caraças

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Chegou a hora da tão esperada excursão de formatura do Porto Seguro. O destino: Caraças, um antigo convento no interior de Minas Gerais.

Todos os alunos mais velhos sempre falavam muito bem desta viagem. Os mais novos ficavam ansiosos para que ela chegasse.

E neste ano, 1990, havia chegado a nossa vez. Que entusiasmo!

Algumas semanas antes, até por questões didáticas, os professores sugeriram que organizássemos um churrasco.

Caberia a nós, alunos, a definição do tipo de carne, como também, a forma de assá-la.

Com 17 anos poucos tinham noção de cozinha. E os poucos que tinham, tinham-na em pouca quantidade.

O assunto entra em debate em sala de aula e o professor, bem democrático, deixa a sala dialogar.

Logo de início a classe abre duas divergências. Há os que querem simplificar e comprar o famoso churrasquinho Mimi, e há os que querem comprar a carne inteira, mais difícil de fazer, porém mais em conta.

Tentei uniformizar as vontades. Mas minha tentativa foi em vão. Não havia como harmonizar. Havia extremos firmes nos dois lados.

Embora o sistema fosse democrático, alguém sugeriu, ao invés da votação prevalecendo a vontade da maioria, algo bem mais liberal.

“E por que cada grupo não leva o que bem entender?! Assim, todos ficarão satisfeitos.”

De um lado, Andreoni com sua bandeira churrasco-Nutella. Sim, naquela época churrasquinho Mimi era Nutella embora esta expressão não tivesse sido cunhada ainda.

De outro lado, Lívia com a bandeira churrasco-raiz.

28 adolescentes optaram pelo churrasco raiz. 3, optaram pelo Nutella, e eu acabei escolhendo a minoria porque a ela estava mais alinhado. Naquela época não sabíamos fazer churrasco. Era evidente que os espetinhos seriam melhores. Nem sempre a maioria tem razão. (Este é um problema inerente e insolúvel da democracia.)

Alguns resmungos para cá, outras risadas para lá, assunto encerrado.

Na maioria, Livia ficou de recolher o dinheiro e comprar a carne. Na minoria, Andreoni era o responsável por esta tarefa.

Chegado o grande dia. A saída do ônibus estava marcada para as 7:30h. Todos bem animados com aquela energia que só os jovens de 17 anos tem.

Lívia trouxe a carne em um saco plástico grande: 20 quilos de carne. Era difícil dela carregar. Muitos a socorreram com alegria ao vê-lá chegar.

Quando eram 7:20, todos já estavam lá, menos…Andreoni.

Quando todos notaram a ausência, começaram as risadas, as piadas, dizendo que os 3 remanescentes da minoria, na qual eu estava incluído, iriam passar fome. Que o elitismo estava sendo castigado pelos deuses, enfim, a verdade é que estávamos realmente suando frio com aquela ausência.

O nosso ânimo estava abalado: primeiro porque Andreoni era, e ainda é, um cara bem divertido. Iria fazer falta. Segundo, porque ele era o responsável pela nossa parte do churrasco. Sem Andreoni, sem churrasco. Iríamos depender da generosidade da maioria.

7:30, hora do ônibus ir embora.

Pedimos insistentemente uma prorrogação de 5 minutos ao motorista, ao som das gargalhadas da maioria e dos gritos de “Bora motorista!!!”

Naquela época, não havia celular. Não dava para saber se Andreoni viria ou não. Só restava-nos rezar para que ele chegasse nos 5 minutos a nós concedidos pela misericórdia dos organizadores.

Depois de alguns minutos, Deus ouviu nossa prece, ao menos parcialmente.

Na famosa rotatória perto do Porto Seguro unidade 1 (naquela época só havia uma unidade em SP), surge, mais brilhante do que nunca, o carro de Andreoni.

Nós 3, da minoria, comemoramos esta cena, com mais entusiasmo do que final de Copa do Mundo. Lembro-me de uma cambalhota em meio ao asfalto. Era um dos nossos, o de japona amarela, que proporcionou o show de alegria!

O carro estaciona, desce a mãe de Andreoni, com uma caixa térmica azul, a maior que existia, cheia de espetinhos, todos arrumados, congelados e conservados no gelo.

“Tia, onde está Andreoni?”
“ Infelizmente, com febre, não poderá ir. Mas aqui está a carne de vocês!”

Abrimos a caixa térmica e aquilo, na época, pareciam moedas de ouro. Era indescritível a sensação de alegria.

Aquela arca do tesouro, com gelo suficiente para aguentar o tempo de estrada, estava visivelmente mais adequada do que o saco plástico, sem gelo, que carregava o churrasco da maioria.

A maior parte da plateia, até então em alvoroço, ficou em silêncio. Era a nossa vez de fazer barulho. E fizemos! Muito!

Muitas risadas depois o ônibus partiu e a história do churrasco ficou esquecida, para dar lugar a outras mais agregadoras.

No dia seguinte, era o dia de assar a carne.

A churrasqueira?

Bom, era um fogão a lenha, bem estreito. Difícil de assar carne grande, mas perfeito para assar espetinhos.

Acendemos o fogo, que iríamos certamente compartilhar, e começamos a dispor os espetos sobre a brasa.

A carne inteira, nada a chegar. Lívia não dava sinal de vida. Nem dela, nem das carnes.

A fome começa apertar a galera e na churrasqueira apenas a carne da minoria. A maioria estava sem nada! Nem pão tinha!

Quando já estava saindo a primeira leva de espetos para o grupo menor, chega Lívia, dizendo que a carne, fora do gelo, havia estragado. Ela tinha a pele branca, mas nessa hora, estava mais branca do que nunca.

Gargalhadas efusivas da nossa parte, politicamente nada corretas, foram sucedidas com o natural e amistoso compartilhamento dos espetinhos em grande quantidade comprados por Andreoni.

O bom humor era tanto que inclusive aceitávamos os pedidos feitos por alguns da maioria dizendo que queriam ora “mal passado”, ora “bem passado”.

Todos estavam convidados. Havia carne para todo mundo.

Embora Andreoni não tenha ido naquela excursão, ele se fez presente através da abundância dedicada nas carnes que alimentaram os corpos de todos naquela época e que geraram esta história, contadas várias vezes nos encontro dos amigos de mais de 30 anos, e que alimenta o nosso espírito até o dia de hoje.

Last modified: 22/08/2019

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