Família e o couro de boi

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Há um bom tempo, quando eu era criança lá no sítio de Ibiúna, após o jantar, todos deitavam nas inúmeras redes coloridas que ficavam penduradas na varanda da casa para cantar. A casa era simples, mas a varanda era grande e abrigava mais de uma dúzia de redes para caber a dúzia de filhos que meu pai tinha e ainda tem.
Meu pai pegava o violão, deitava na sua rede, sempre a mais firme para agüentar seu corpo grande de 1,87.
Cada um tinha a sua rede. Quando a casa estava lotada, com amigos ou primos, as redes eram compartilhadas.
Todos a postos, a cantoria começava e durava até meu pai ficar com os dedos cansados de tocar as cordas do violão.
Entre as músicas sertanejas de raiz que cantávamos, tinha uma que sempre me emocionava mais.
Ela conta a história de um homem que morava com sua mulher e o filho de oito anos. Seu pai, já idoso, foi morar com eles também. Porém, depois de um tempo, a mulher e o sogro começam a não “combinar”. Na minha mente infantil não entendia muito bem o que isso significava (não combinar, como assim?!?!). Mas entendia perfeitamente o resultado: o homem expulsa o pai de casa, porque ele não “combinava” com sua esposa. Entre ela e ele, o homem escolheu ela. Assim, para dar cabo a sua escolha, o homem dá um pedaço de couro de boi para o pai se aquecer nas noites frias onde quer que ele fosse dormir dali em diante. O neto, já vendo seu avô longe, com quem combinava (e muito), corre e pede a metade do couro de boi e retorna triste para casa.
O homem pergunta ao filho o porquê de ter pegado metade do couro de boi do avô:
“Disse o menino ao pai: um dia vou me casar,
O senhor vai ficar velho e comigo vem morar.
Pode ser que aconteça de nós não se combinar.
Está metade do couro, vou dar para o senhor levar”
Conheci esta música quando criança. Nem imaginava que um dia eu teria meus filhos, e também não podia prever como seria a relação deles com os avós.
Hoje prezamos muito a relação deles com os avós, maternos e paternos. Tanto que o mais novo dos filhos outro dia afirmou: “Eu tenho muita sorte. Tenho meus quatro avôs.” 
De fato, ninguém é obrigado a combinar com ninguém, mas normalmente, as crianças aprendem com seus pais muitas coisas, entre elas, o respeito aos idosos. E, certamente elas tratarão seus pais, do mesmo jeito que eles se relacionaram os seus. O couro de boi, grande ou pequeno, quente ou frio, amoroso ou não, será o mesmo.

Enviado do meu iPhone

Last modified: 30/07/2020

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