O barbeiro era o de sempre.

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Seu Nestor. Trinta e cinco anos cortando o cabelo de Dr. Flávio. Desde os 15 anos, quando de doutor, ele ainda não tinha nada.
Neste dia tinha algo diferente na barbearia: a moça que lava os cabelos dos clientes. Dr. Flávio estava divorciado há 5 anos e nem tinha planos de novo matrimônio. Tinha seus relacionamentos, mas todos casuais. Ele fazia questão de não prometer nada, embora fosse difícil as mulheres com as quais se relacionava não se iludirem. Não aceitavam a verdade das palavras que ele proferia neste sentido. Preferiam ficar com a fantasia de que um dia ele poderia mudar de ideia. Dr. Flávio era médico-cirurgião, bem sucedido. Cuidava da aparência. Era um atleta. De cinquenta anos, cujo corpo fazia inveja para os mais novos. Culto, uma educação e calma inigualáveis. Era de fato um bom partido. Naquele dia foi cortar o cabelo como de costume. E em segundos notou a nova pessoa no ambiente. O hábito o fez lavar os cabelos antes de cortar. Era esta a função da moça, a nova funcionária. Dna. Maria, a que a antecedeu, havia se aposentado. Helena é jovem. Pouco mais de 20 anos. Vida sofrida. Pegava três conduções até chegar ao trabalho. Morava com a avó, pois órfã de pai e de mãe, e o trabalho ajudava-a a pagar o aluguel. E naquele mês estava atrasado. Ele trocou três segundos de olhar com ela, suficientes para saberem que um atraiu a atenção do outro. Lavar o cabelo, naquele dia foi diferente, para ela e para ele. A água fria que ele sempre preferia não conseguia esfriar o corpo aquecido naqueles três segundos escaldantes. O toque de Helena na cabeça de Dr. Flávio aumentava o calor. Não havia água fria que desse conta de tanto calor.
Nas mãos de Helena estava a materialização da fantasia do pai que não teve, daquele acolhimento que deixou de ter aos sete anos quando seus pais faleceram vítimas de uma guerra de família no interior da Paraíba em decorrência de uma disputa de terras. Veio com a avó para São Paulo fugindo da família inimiga e com a perspectiva de nova vida. A avó era boa, mas não tanto como seu pai, que estava agora, em fantasia, em suas mãos. Homem rico, inteligente, educado e sensível. E gostou dela, pelo menos foi o que lhe disse em três segundos. Três segundos, daquele jeito, com as duas almas abertas e curiosas são mais do que suficientes para uma catarse. Para Dr. Flávio, o toque de Helena em seus cachos confirmou a primeira impressão. Os minutos dela massageando a sua cabeça lotada de pensamentos elevou-o ao céu. Viu estrelas, asteroides, anéis de Saturno, viu tudo naqueles minutos que gostaria que durassem para sempre. Helena enxaguou o cabelo de Dr. Flávio e disse suavemente: “pode voltar para a cadeira do Seu Nestor”. Dr. Flávio hesitou por alguns segundos, mas cumpriu a ordem embora, em espírito, contrariado. Queremos repetir as sensações boas e nos afastar das ruins. Aquela ele queria repetir. Gostaria de continuar ali e lavar o cabelo mais uma vez. Mas era senhor distinto, não podia demonstrar muito o que sentira.
Voltou às mãos conhecidas de décadas de Seu Nestor, e com elas sua alma pousou abruptamente na terra, firme, árida, sem colorido, sem estrelas, e com a frieza da ponta das tesouras.
Cortou o cabelo, o mesmo corte de sempre. Pagou em dinheiro, deixou uma caixinha a Seu Nestor como costumava fazer e à Helena também, da mesma forma que faria com Maria. Nada mais, para não demonstrar o que sentira.
Despediu-se de todos, simpático que era, e foi embora com o cabelo cortado porém com mais pensamentos. Queria conhecer mais Helena.
Voltou para casa, e na solidão de seus pensamentos relembrou que tinha tido a mesma experiência quando conheceu sua primeira mulher, Dora, enquanto cursava a faculdade de medicina da Universidade Paulista em São Paulo. Aquela sensação que havia tido hoje foi exatamente a mesma que havia tido, com sua primeira mulher, há 30 anos. Dora e Helena haviam provocado nele as mesmas emoções. Pareciam, naquele instante, a mesma pessoa. Porém, seu relacionamento com Dora, com o tempo, deu no que deu. Apesar da alegria dos filhos havidos do matrimônio, Dr. Flávio havia ficado traumatizado com a dor do divórcio. Havia-se proibido de amar de novo. Ele era educado, inteligente, mas gostava de ter tudo sob controle. E controle não é uma palavra que combina com amor, pelo menos com o amor verdadeiro.
Podia ele sair uma ou duas vezes com Helena, mas não podia dar a ela o que ela havia lhe pedido naqueles três segundos de olhar, e nos minutos de toque em seus cabelos: compreensão, carinho, amor, conforto e vínculo. Tudo isso era demais para cabeça dele. Começar tudo de novo,….
Dormiu um sono profundo, acordou e foi trabalhar logo cedo. Passou uns dois ou três dias pensando em Helena e na sensação que tinha tido, mas o dia a dia prendeu sua atenção. Ele foi adiante fazendo as suas tarefas cotidianas e tendo as emoções que se permitia ter: as que estavam sob controle.
Helena, por sua vez, a cada cliente que chegava esperava pelo Dr. Flávio, pois seu sentimento era sincero. Não tinha lógica esperar que ele voltasse antes de um mês, quando os cabelos já teriam crescido, mas ela o esperava mesmo assim. A cada dia aumentava sua fantasia e ensaiou pegar o telefone na agenda da barbearia para ligar para ele. Seria atrevimento. Podia perder o trabalho e o flerte. Preferiu confiar naquilo que já havia feito ele sentir. Uma mulher seduz um homem com um olhar. E ela sabia olhar. Seus traços e curvas também a ajudavam em sua auto-estima. A sua juventude então….O jovem é bilionário por natureza. Quantos bilionários idosos não dariam bilhões para serem jovens e saudáveis novamente.
Helena estava esperançosa de seus sentimentos. A fantasia inundara-lhe o corpo e alma. Porém, ela não sabia das feridas que o amor havia deixado no Dr. Flávio. Este canteiro da sua alma, ele não havia mostrado a ela. Deixou-se ver por ela, mas não todo.
Diferentemente dela, cuja juventude e inocência a fez abrir tudo o que sentia naqueles 3 segundos. Ela não tinha tido amor até então. Ela era nova, tinha esperanças, mas ele…tinha amado tanto sua primeira mulher. Não aguentaria passar pelo que passou novamente.

Passado um mês, era hora de voltar ao barbeiro. Era uma segunda-feira. Lembrou das suas sensações diante de Helena da última vez, ficou com desejo e com medo de repetí-la. Sentimentos aparentemente contraditórios, mas que normalmente caminham juntos: o desejo e o medo. Marcou com Seu Nestor para quinta-feira quando saía mais cedo do Hospital. Gostava de fazer as coisas com antecedência para que tudo desse certo. Helena ouviu a conversa dos dois e não dormiu. Era naquela semana que iria confirmar suas esperanças. A sua alegria era tanta que chegou a pensar que ele iria lhe pedir em casamento na própria quinta-feira. Quanta fantasia pode existir na alma de uma mulher…na terça escolheu o vestido, na quarta a lua-de-mel, na quinta de manhã a casa na qual iria morar e ter filhos. Foi trabalhar logo cedo com à disposição que jamais havia tido. Alegre, feliz, vendo beleza em tudo. Estava inundada de amor e de esperança.
O apontamento do Dr. Flávio era as 17h. Das 16h às 17h os ponteiros do relógio batiam em uníssono com o coração de Helena. Dr. Flávio também estava ansioso. 16:45h toca o telefone da barbearia. O medo superou desejo. Dr. Flávio foi cortar o cabelo em outra barbearia.
No dia seguinte, Helena enviou atestado a Seu Nestor. Precisava de ao menos um dia de descanso. Chorou os rios de lágrimas de uma fantasia de criança desfeita. Saiu da tristeza e foi em frente, até a sua próxima fantasia. Juntou os trocos ganhos na semana e pagou o aluguel atrasado.
Tinha apenas o dinheiro suficiente para pegar a condução no próximo dia para ir ao trabalho. Foi o que fez. Lamentou a fantasia finalizada na primeira parte do primeiro capítulo do seu primeiro livro. Suspirou.
No dia seguinte, abriu seu livro novamente e foi trabalhar. O mesmo vento forte que trouxe os pensamentos sobre Dr. Flávio, levou-os na mesma velocidade. Neste novo dia, atendeu novos clientes e deixou a sua imaginação livre para o que a vida iria lhe dar no futuro.
Já Dr. Flávio estava com muito dinheiro no banco, com o corpo sarado, mas a alma amputada, e justo naquela parte mais importante: a que está disposta à vivência do amor.
Pensando bem, bilionário não é o jovem ou o velho, mas sim aquele que está disposto a amar e se sentir amado, não importa a idade.
(São Paulo, 9/06/2019)

Last modified: 21/08/2019

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